Construir adultos saudáveis é um dos grandes desafios da psicologia em relação à desconstrução e autorreflexão dos impactos de abusos e maus-tratos sofridos na infância.
Um estudo recente reforça o entendimento de que experiências de abuso e maus-tratos na infância podem ter repercussões profundas na personalidade e no bem-estar emocional ao longo da vida adulta. Pesquisadores têm observado que a severidade e a duração do trauma infantil estão diretamente ligadas a alterações no desenvolvimento cerebral e no funcionamento do eixo HPA (hipotálamo-pituitária-adrenal), responsável pela resposta ao estresse.
Dados divulgados por um estudo pioneiro conduzido pela Universidade de Essex revelou descobertas alarmantes sobre o impacto dos abusos na infância no desenvolvimento cerebral, apontando como essas experiências traumáticas podem reconfigurar redes neurais cruciais. Publicados na revista Biological Psychiatry Cognitive Neuroscience and Neuroimaging, os resultados destacam que crianças expostas a abusos enfrentam não apenas dificuldades emocionais, mas também alterações significativas nas redes neurais responsáveis pelo foco em si mesmas e pela resolução de problemas.
De acordo com a psicóloga especializada em neuropsicologia e análise do comportamento da Hapvida NotreDame Intermédica, Karina dos Santos Siqueira, quanto mais intensa e prolongada for a exposição à violência direta, maiores são os prejuízos no desenvolvimento cerebral das crianças. “O sofrimento não é apenas quantitativo, mas também qualitativo. O impacto do trauma pode reconfigurar as redes neurais e afetar a capacidade de regulação emocional e social dos indivíduos”, explica a especialista.
Construção de adultos saudáveis
Para mitigar esses efeitos adversos e promover um desenvolvimento saudável na vida adulta, a psicóloga enfatiza a importância de intervenções preventivas e terapêuticas desde a infância, a exemplo da prevenção e redução de riscos, sob a orientação de que pais e cuidadores evitem exposições prejudiciais como brigas familiares e ambientes de risco. A exposição a contextos adultos deve ser minimizada para proteger o desenvolvimento emocional das crianças.
Por outro lado, a autorreflexão e apoio profissional de adultos que foram vítimas de abuso na infância devem ser encorajadas, além do apoio psicológico para entender como essas experiências moldaram sua personalidade atual. “É essencial reconhecer os padrões de comportamento que podem estar relacionados ao trauma e buscar ajuda profissional para promover mudanças positivas, ainda que tardias”, destaca Karina.
“A intervenção precoce de terapias especializadas que visam restaurar a confiança, a autoestima e as habilidades sociais são fundamentais para ajudar as vítimas a reconstruir uma vida equilibrada e positiva”, enfatiza a especialista.
De acordo com a psicóloga da Hapvida NDI, promover a conscientização sobre os diferentes tipos de abuso (físico, emocional, sexual, negligência) é crucial para identificar sinais precoces e prevenir futuras situações de violência, como forma de educação e conscientização.
Efeitos do trauma na personalidade e no comportamento ao longo da vida
Abusos na infância, sejam eles físicos, emocionais, sexuais, ou de negligência, aumentam substancialmente o risco de desenvolvimento de transtornos mentais graves.
O estudo sublinha a importância de abordagens holísticas que não tratem só os sintomas, mas que também promovam um entendimento profundo dos efeitos do trauma de infância na personalidade e no comportamento ao longo da vida adulta.
Para os especialistas, não há dúvidas de que “enfrentar os desafios de frente e investir em intervenções eficazes, podemos criar um ambiente mais seguro e empático para as gerações futuras”.
Karina destaca, ainda, os impactos do abuso na infância e sugere caminhos para construir adultos resilientes e saudáveis, e enfatiza a influência direta no prognóstico de transtornos duradouros. “O estudo deixa evidente que a duração e a intensidade do trauma também desempenham um papel crucial no desenvolvimento cerebral infantil. Os impactos do trauma infantil vão além das dificuldades emocionais imediatas. Crianças vítimas de abusos diretos ou indiretos podem desenvolver problemas significativos na forma como se relacionam consigo mesmas e com os outros ao longo da vida, tanto em ambientes familiares quanto profissionais”, alerta.
“Compreender como o trauma afeta o desenvolvimento cerebral, pode transformar a forma de lidar com a questão a partir de como as intervenções terapêuticas são concebidas e aplicadas, visando reconstruir não apenas o cérebro, mas também a identidade e as habilidades de relacionamento de crianças afetadas, inclusive na fase adulta”, completa a psicóloga.